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A arquitetura do mercado da arte, uma introdução

Olav Velthuis

DESDE O SURGIMENTO do mercado da arte moderna na primeira metade do século XIX, os comerciantes da arte definiram sua própria identidade como promotores e patronos desinteressados ao invés de mercadores ou negociadores da arte. Em uma época na qual mercados varejistas se desenvolveram e estabelecimentos comerciais surgiram na maioria das metrópoles da Europa Ocidental, os comerciantes da arte se desviaram do comércio e da busca de novos consumidores. Eles foram rápidos em remodelar seus estabelecimentos “ideologicamente,” como escreve um historiador, do “equivalente a comerciantes de livros e antiquários a rivais de museus”. Além disso, comerciantes da arte ficaram receosos de serem identificados com a elite econômica que formava sua clientela, e, em vez disso, estabeleceram estreitas relações com artistas, críticos, acadêmicos e intelectuais.

Da mesma maneira, comerciantes de arte contemporânea sustentam que eles almejam distribuir arte para a história, não para o mercado. Em seminários e encontros de especialistas dos quais participei, eles falavam de suas galerias como um “lugar de experimentação”, um “veículo das ideias”, e um “biótopo ameno” em que a arte pode florescer. Em vez de proporcionar uma “vitrine para mercadorias” eles disseram ter a pretensão de se envolver em um “diálogo privilegiado com o artista.” Em um estudo empírico, comerciantes alemães de arte disseram aos pesquisadores que o critério pessoal e o critério artístico são mais decisivos do que o critério econômico quando se trata da seleção dos artistas que a galeria representa. Em entrevistas eles chamam a si mesmos de “amadores” (amateurs) no sentido francês de amantes da arte, que querem compartilhar seu amor pela arte com os outros; a função das galerias seria “prover as pessoas que entendem de arte, que apreciam e que se dedicam à arte, com oportunidade para vê-la” como a comerciante de arte de Nova York – Barbara Gladstone – disse em uma dessas entrevistas. E em seus sites na internet, eles escrevem que concebem como sua responsabilidade “trabalhar pelo desenvolvimento de longa duração da carreira de cada artista, agindo como um contato para galerias internacionais e museus, bem como dispondo obras em coleções para criar um arquivo histórico de cada artista e ainda agir como um espaço público acessível em que as exposições se tornam um gesto exemplar do poder da subjetividade para os espectadores de modo geral.” O fato de as galerias de arte também venderem arte só pode ser entendido nas entrelinhas, se é que pode ser lido de todo.

Ao escrever esse livro, eu me deparei com muitas outras instâncias dessa autorrepresentação não-comercial entre comerciantes da arte contemporânea. Os espaços de galeria em que eu entrei para as entrevistas com seus proprietários ou diretores eram prístinas, áreas brancas, equipadas mais como museus do que como lojas varejistas. As obras que eles estavam expondo, na maioria das vezes parte de um show solo, certamente estavam à venda, mas eu frequentemente não pude detectar quaisquer iniciativas para fazer aquelas vendas ocorrerem. Em Amsterdã, era algumas vezes difícil encontrar galerias, seja porque elas estavam localizadas longe das áreas populosas ou ruas comerciais, ou porque dificilmente poderiam ser identificadas como galerias por sua aparência externa. Não deveria, portanto, ser uma surpresa as pessoas dizerem que hesitam entrar em galerias por causa do limiar psicológico que está sendo imposto sobre elas.

Em entrevistas preliminares eu fui avisado por colegas pesquisadores, amigos com uma formação no mundo da arte, e comerciantes, que meus entrevistados não iriam querer discutir a finalidade comercial de suas atividades. Em relação a isso minha experiência como historiador da arte provou ser uma vantagem. Antes de iniciar uma entrevista eu formularia normalmente questões sobre a exposição atual ou sobre os artistas que a galeria representava; também assinalei aos meus informantes que eu estava ciente da posição da galeria e dos artistas no mundo da arte contemporânea. Minha impressão era que, após ter mostrado que meus interesses ultrapassavam os assuntos de negócios, a maioria dos comerciantes se sentiu à vontade para discutir práticas comerciais. Mesmo assim, entretanto, meus entrevistados pouco revelaram sobre as estratégias explicitamente dirigidas a maximizar lucros, satisfazer as demandas do mercado, ou encontrar nichos que não tinham sido explorados antes. Em vez disso, eles realçavam que estavam conectados “mais à arte do que ao dinheiro”, e que teriam escolhido uma profissão diferente se quisessem ficar ricos. Tratar a arte comercialmente não tem “cachet” ou “savoir-vivre”, eles diziam. Em relação ao programa, a resposta dominante era que continuamente tentavam “ficar longe da tendência”; eram apenas capazes de vender obras de arte que eles próprios pudessem apreciar. Um comerciante descreveu a si mesmo e seus colegas como “um bando de sonhadores”.

Essas autorrepresentações anticomerciais não significam, entretanto, que os donos de galeria descartam interesses comerciais. Como escreve Nancy Troy sobre o ilustre comerciante da arte Daniel-Henry Kahnweiler, que exercia um papel central no mercado da arte cubista no início do século vinte: “No intuito de vender obras de arte de artistas da vanguarda aos clientes que espera atrair de maneira razoável, [Kahnweiler] tinha de se afastar do alcance das práticas comerciais associadas com estabelecimentos que exploravam mercados bem maiores. Embora os salões, assim como as lojas de departamentos, atraíssem enormes audiências às suas vastas e, por vezes, altamente orquestradas exibições de objetos disparatados, se publicasse catálogos extensos e descrições amplamente visíveis em jornais e revistas populares, o comerciante particular mantinha a distinção de seus produtos não os anunciando e sugerindo o caráter elitista e a autossuficiência intelectual das obras de arte que exibia.” (Troy, 1996, p. 122).

Os comerciantes da arte contemporânea que eu entrevistei também buscam transformar bens que carecem de qualquer valor utilitário direto em algumas das mercadorias mais estimadas dos mercados varejistas modernos: invariavelmente, eles venderam obras de arte por quatro, cinco, seis, e algumas vezes mesmo por preços de sete dígitos. Especialmente tendo em conta o fato de que muitas dessas obras dificilmente são significativas, inteligíveis, ou valiosas para as pessoas fora do mundo da arte, tais feitos se afiguram surpreendentes. Seria tolo, portanto, tomar ao pé da letra as autorrepresentações anticomerciais dos comerciantes de arte. Em vez disso, poderia se argumentar que essas autorrepresentações ajudam a própria busca desses interesses. As solenes e austeras galerias, por exemplo, com suas escassas referências ao comércio, transportam as pessoas a um ambiente radicalmente diferente, no qual concepções utilitárias de valor são temporariamente suspendidas, e, quando se trata de preços, leis diferentes estão em operação.

Olav Velthuis

OLAV VELTHUIS é Professor Associado do Departamento de Sociologia da Universidade de Amsterdã, especialista em sociologia econômica e cultural. Autor da obra Talking Prices, entre outras, e estudioso do desenvolvimento dos mercados da arte em países como o Brasil, a Rússia, a Índia e a China.
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